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METAPANDEMIA: UMA REFLEXÃO PESSOAL

Passada a surpresa e aflição iniciais, face a uma ameaça nunca antes identificada, invisível e pandémica, começaram a surgir, em suportes e meios diversos, as reflexões sobre o fenómeno. 

Começaram por ser reflexões sobre os aspetos mais imediatos e as consequências mais previsíveis: a incapacidade de alguns indivíduos agirem em conformidade com a gravidade da situação, a responsabilidade individual no bem comum, a impreparação dos meios de socorro para lidarem, com dignidade e segurança, com os doentes, a entrada em teletrabalho, quase instantâneo e sem meios, em diversos setores ou as consequências económicas.

Mais tarde, começou-se a refletir sobre a capacidade (ou não) do SNS, sobre a heroicidade dos profissionais de saúde (aplaudidos à janela o que, sendo um gesto bonito, não tem qualquer eficácia), sobre os apoios à economia e os apoios sociais, sobre a relação sistema público de saúde-sistema privado, sobre as cadeias de transmissão (sobretudo nos lares e nalgumas zonas dom país depois sujeitas a cerca sanitária) ou sobre o abandono dos doentes não-COVID. 

Mais recentemente, e sustentado nalguns estudos científicos, começou a refletir-se sobre o impacto da pandemia na saúde mental.

Embora transversal a todo o processo, só mais tarde se começou a refletir sobre as limitações que a gestão da pandemia revelou – o planeamento deficitário, os avanços e recuos, a falta de clareza, a hesitação em tomar decisões mais duras e impopulares, o impacto do desinvestimento dos últimos anos no SNS na exaustão dos profissionais de saúde, o desconhecimento dos políticos em relação à realidade, as promessas não cumpridas, a deriva de algumas instituições cuidadoras e a aparente criação de uma única realidade – a da COVID – ignorando tudo o que não era COVID, por receio ou falta de meios.

E só muito mais tarde os atores políticos e institucionais assumiram esta situação, relutantemente, pois inicialmente negaram-na com a mentira, de tão evidente que era, com discursos redondos e evasivos; ainda mais relutantemente, assumiram alguma da responsabilidade, ao invés de apenas apontarem culpados externos (os cidadãos) ou, como acabo de ouvir, na SIC, a Ministra da Saúde, com o truísmo de que esta realidade era desconhecida, complexa, multifatorial e que, portanto, era impossível de planear. E reconheceram, então, o papel fundamental da aprendizagem na gestão deste processo.

Confesso que aceito a visão veiculada pela ministra, de que nem tudo falhou, que houve erros que foram identificados e corrigidos, permitindo melhorias em vários aspetos, mas não aceito a impossibilidade de planeamento. Das coisas mais básicas que nos ensinam em planeamento é que, sendo hoje a maioria dos fenómenos complexos, há que gerar cenários vários, sendo um deles o pior dos piores cenários, que se desenha e usa quando as situações são muito graves e com efeitos devastadores (como era este o caso: a morte de pessoas) e, neste cenário, as medidas devem ser aplicadas, mesmo que não se saiba o seu impacto positivo, desde que não tenham seguramente, impacto negativo, ou seja, optar pelo mal menor. Nesta linha, nunca entendi a hesitação em usar ou não usar máscara. Que mal podia fazer a máscara? Os profissionais de saúde usam-na há anos! 

Mesmo que a razão, como argumentaram alguns, tivesse sido a eventual ausência de máscaras no mercado e a não criação de pânico na população, então que se dissesse a verdade. A verdade é sempre mais fácil de gerir, além de que a omissão (porque parece que ninguém assume que mentiu) demonstrou ser catastrófica.

Menos ainda aceito as falhas de planeamento da Comissão Europeia na compra de vacinas, que numa abordagem quase ingénua e incompetente, confiaram na capacidade de fornecimento das empresas farmacêuticas e não integraram no Caderno de Encargos e no Contrato qualquer cláusula de incumprimento e suas sanções ficando, assim, completamente reféns das empresas numa situação desta gravidade.

Das coisas mais básicas que me ensinaram no início da carreira é que em qualquer Caderno de Encargos se deve integrar uma cláusula de incumprimentos e as respetivas coimas, não por desconfiar dos fornecedores, mas porque o ónus de incumprimentos imputáveis ao fornecedor não devem prejudicar o cliente.

Como pode uma administração de elite, paga a peso de ouro, ser tão incompetente, ainda para mais, numa situação tão grave?

Uma das hipóteses que coloco para este descalabro é um eventual impacto das nomeações políticas para cargos públicos, afastando os funcionários realmente preparados e competentes, o que acontece paulatinamente já há muitos anos. Enquanto as coisas correm bem os resultados não são tão impactantes e a incompetência vai sendo camuflada, mas em situações mais sérias aprecem como o azeite ao de cimo da água. Estes Técnicos embaixadores de partidos aprenderam a como ganhar votos, mas não aprenderam a planear e a defender o interesse público.

Incompreensível para mim foi também a gestão feita dos doentes não-COVID, dos quais, casualmente, fiz parte. Os números do INE eram esclarecedores embora, inicialmente, tenham sido mascarados com argumentos que se mostraram irreais. 

Realmente, os doentes não-COVID ficaram com a vida suspensa, por falta de respostas, quer dos Centros de Saúde (que interrompem as consultas e quase tratavam os doentes como uma ameaça, uma persona non grata nos seus domínios), quer dos Hospitais (que, como os meios não são elásticos e o mundo pareceu resumir-se, para os decisores políticos, à COVID 19, tiveram de reorganizar os meios já parcos deixando a descoberto consultas, exames, cirurgias que resultaram no agravamento do estado de saúde ou na morte de doentes não-COVID).

Houve ordens do Ministério da Saúde para suspender estes serviços e outros fundamentais ara a vida de alguns doentes, como o caso das Juntas Médicas de Avaliação de Incapacidade, suspensos desde 13 de março de 2020, lesando os direitos dos doentes com doenças incapacitantes, como o cancro, como é o meu caso, que aguardo Junta Médica desde outubro de 2019.

Em todas estas situações podemos ver o impacto das não decisões/desinvestimentos/má gestão de pessoas acontecidos desde há mutos anos a esta parte: não foi o COVID que provocou esta situação, foi o que não feito em décadas que, num momento de crise, se manifestam em cascata e com dimensões humanamente inaceitáveis.

Mas para além destes aspetos, una mais falado do que outros, preocupa-me ver pouca gente a refletir sobre o que esta pandemia nos colocou à frente dos olhos sobre as escolhas que as sociedades modernas têm tomado em termos da vida em comunidade, do funcionamento das famílias ou das relações interpessoais no geral. 

Não me parece suficiente dizer-se que a sociedade ficará melhor, mais solidária, mais empática e menos hedonista. Não acredito que o venha a ser, porque a natureza humana é egoísta desde o início da humanidade e porque podemos observar, desde já, alguns indícios de que nada mudou: gente que se aproveita da situação para enganar e roubar outros a pretexto da vacina, fábricas a produzirem vacinas falsas e gente a vendê-las na net, entre outras situações inacreditáveis.

No que continuo a acreditar é na possibilidade de cada um de nós melhorar na sua relação com o seu círculo mais próximo: a família, os amigos, os vizinhos, os colegas de trabalho. 

E é aqui que surge a minha reocupação pois não vejo grande reflexões (de preferência auto-reflexões) sobre o significado do aumento do número de divórcios e de violência doméstica durantes os confinamentos, sobre a manifestação de mágoa por não verem os idosos internados em lares, quando sabemos que a maioria é esquecida, abandonada, não visitada em situações normais, ou sobre a exaustão dos Pais com os Filhos em casa.

As sociedades ancestrais eram comunitárias: nas famílias conviviam, em proximidade, diversas gerações, que se ajudavam entre si, que formavam laços. Porque os laços formam-se pela proximidade e pela constância, não são automáticos nem isentos de dificuldades (acho que nos esquecemos disso).

Nas sociedades modernas as famílias delegaram noutros estas relações, encarando-as como responsabilidades muito duras e incompatíveis com o ritmo de vida moderna: as crianças foram postas em creches, onde entram antes dos adultos entrarem no seu trabalho e saem depois destes (se os pais estão cansados e stressados, o que dizer das crianças?) e os idosos foram depositados em lares, nem sempre bem tratados (porque muitos lares são empresas, logo visam o lucro), por vezes junto de pessoas que não conhecem, com histórias mitos diversas onde não há interceção de vivências ou memórias que possam partilhar. Os vizinhos são ignorados e nem um bom dia, por vezes, se dá no elevador, os filhos emigram e constroem a sua vida em países diferentes, em que a língua dificulta a comunicação dos netos com os Avós e em que o apoio aos Pais idoso é muito difícil, se não impossível. No trabalho a competição instalou-se e confiar num Colega de trabalho passou a ser exceção e com o teletrabalho a questão das relações com os Colegas traz novos desafios.

O que estamos a fazer às comunidades humanas de que fazemos parte, a nós próprios e aos outros?

Será que este modelo de afastamento e redução das interações, que delegamos noutros, que desconhecemos, faz sentido?

Como nos podemos apoiar uns aos outros em situações de crise (a pandemia foi apenas uma, porque há e haverá muitas mais) se estamos longe (por vezes pais e Filhos em países diferente), se o hábito é viver separado e com pouca proximidade (a tecnologia permite comunicar, mas proximidade é outra coisa), se vemos outras gerações como um fardo e não como uma fonte de alegria (as crianças são chatas e os idosos insuportáveis) e se não estabelecemos, ao longo do tempo, relações de confiança, mas sim de desconfiança?

Será que as "relações líquidas", de que fala o filósofo Zygmunt Bauman, por oposição às relações sólidas, nos fazem sentir melhor, mais felizes?

A pandemia mostrou-nos que, em situações de crise, muitas das instituições em quem delegamos responsabilidades, falharam (as Creches e Escolas fecharam, os lares mostraram não estarem preparados e deixaram morrer idosos, os Hospitais não apoiaram os doentes não-COVID como necessário, empresas fecharam e os seus trabalhadores ficaram no desemprego,…) e quem nos valeu, quem estava realmente lá, foram a Família e os Amigos. Foram as relações de proximidade.

Se não as construímos e consolidarmos ao longo do tempo elas não surgirão por geração espontânea, não existirão em momentos de crise, as que pensávamos existir escorrerão como líquido por entre os dedos e teremos grande parte da comunidade sem rede social de suporte.

Não seria de pensarmos sobre isto e de procurarmos reorganizar as nossas redes sociais, familiares, intergeracionais e outras?

Isto não vos dá que pensar?  A mim dá, e muito…


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